sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Eu sei mas não devia.
"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para mortos.
E aceitando os números aceita a não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra,dos números da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar pra ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar trabalho, para ganhar mais dinheiro, pra ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar televisão e ver comerciais.
A ir ao cinema e a ver publicidade.
A ser instigado, conduzido , desnorteado, lançado na infalível catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro temor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua o resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos , para esquivar-se a face, da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesma.""
A gente se acostuma.
De Marina Colassanti
Edna Campos.
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Minha querida
ResponderExcluirAdorei o texto, realidade de vida,é assim mesmo acostumamo-nos a coisas que depois é dificil deixar.
Beijinhos
Sonhadora
Belo e verdadeiro texto
ResponderExcluir]O dia a dia e justamente o que descrevestes
Emfim acostumando ou não assim tem que ser
beijos no coração
temhas um final de semana regado de muito amor
Preciosa Maria
Amiga Edna!
ResponderExcluirQuanta verdade, por mais que doa, tudo aqui dito é a mais pura verdade.
Vivi assim 40 anos da minha existência. felizmente tive condições de opção de vida sem perder a principal fonte de rendimento, mas cortei com tudo o que era "supérfluo".
Tenho menos mas sou muito mais rica.
Precisamos todos tentar ver a atempadamente onde e como poderemos ainda ser felizes.
Não entrar nesse ciclo vicioso que nos rouba a vida e tudo o que mais precioso ela tem.
Beijos
Ná
Edna,a nossa cultura ocidental não nos ensinou essa coisa do desapego e por isto vivemos tão possessivamente tudo.
ResponderExcluirGrande abraço e bom fim de semana pra você.Estou indo amanhã votar,meio sem vontade pra ser sincera!
Foi um prazer descobrir (através da Preciosa) o seu espaço.
ResponderExcluirVou seguir com todo o gosto.
beijo :)
Edna,
ResponderExcluirAcostumamos por comodismo ou apego com determinadas situações. A vida vai passando e vamos deixando de vivenciar , provavelmente momentos melhores e mais felizes. Creio que precisamos sempre analisar o que ocorre e tentar mudar , se for ao caso.
Beijos
Lindo Domingo, dia de Paz e Adoração
ResponderExcluirDia de lembrar do Criador
Tenha uma linda semana, de bençãos.
No Hanukká ...
VIDA E AUTORIDADE
O princípio de nossa vida é o da submissão, assim como o princípio do pássaro é voar e o do peixe é nadar. Se todas as igrejas tomarem o caminho da submissão, esse fatos gloriosos serão revelados diante de nossos olhos.
Bjos.
Valquiria
Calado
Eu sei de tudo isso mas não devia e nem me acostumei. Belo texto do cotidiano. Beijo
ResponderExcluirOlá Edna!
ResponderExcluirQue bom que nem a tudo me acostumo então, me rebelo um pouco...e encontrei um tempo pra vir tomar um cafèzinho aqui com você e encontro este lindo texto que nos trouxe! Impossível não refletir, depois de ler o que ela diz aqui.
Odeio aquela coisa: .."vou levando..." "empurrando com a barriga" . Quando me percebo quase aí,minha barriga esfola, mas muito mais porque fico me debatendo, mesmo que seja na areia, quando não posso nadar.
Beijos. (vou indicar seu blog lá no dihitt)
Até a próxima... Vera.
Pois é Edna, e o pior, é que se a gente não se policiar e ficar bem atenta, se acostuma mesmo!...:(
ResponderExcluirEstava um tempinho fora da blogosfera (curtindo a neta), e aos poucos estou retomando a rotina e visitando os amigos.
Seu blog está muito lindo. Parabéns!
Beijão prá você, amiga
Cid@
amiga gostei do texto...rs
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